Ficha Técnica
GÊNERO Música: História e crítica
CAPA Kevin Diniz
FORMATO 15,7 × 22,7 × 1,9 cm
PÁGINAS 168
PESO 0,302kg
ISBN 978-65-01-24381-8
ANO DE LANÇAMENTO 2024
Ficha Técnica
GÊNERO Música: História e crítica
CAPA Kevin Diniz
FORMATO 15,7 × 22,7 × 1,9 cm
PÁGINAS 168
PESO 0,302kg
ISBN 978-65-01-24381-8
ANO DE LANÇAMENTO 2024
A virada do milênio foi um momento vigoroso para a música independente de Curitiba. Contudo, a emergência da “cena de cenas” aqui descrita reflete menos uma especificidade regional e mais um contexto amplo, marcado pelo acesso crescente a novas tecnologias, ao ensino superior, a setores de mercado cada vez mais diversificados e a demandas de consumo que aumentavam sob as égides da internet, da globalização e de uma economia forte e soberana.
No início dos anos 2000, o Brasil finalmente parecia avançar. Nossa seleção era a melhor do mundo, conquistando o pentacampeonato em 2002. No mesmo ano, Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito presidente pela primeira vez e Criaturas e outras bandas surgiram no cenário musical. Éramos jovens, acreditávamos que podíamos tudo e entoávamos juntos refrões pegajosos que só nós conhecíamos. No auge da nossa frondosa e afrontosa juventude, aquilo tudo nos orgulhava muito. Principalmente o fato de sermos independentes e diferentes do resto.
Nossa seletividade segregacionista não era sinal de fracasso. Muito pelo contrário, acreditávamos que era a prova de que nosso som era realmente foda. Não almejávamos o sucesso nem o mainstream, pois isso significaria romper com os princípios de total amadorismo e independência, que nos definiam. Éramos, certamente, uma banda independente: um grupo de jovens da classe média trabalhadora, majoritariamente brancos e privilegiados, com algum (talvez pouco) dinheiro, um tanto de talento e algumas ideias malucas e discursos mais ou menos progressistas. Mas não tínhamos, na época, grande noção nem a pretensão de romper paradigmas ou criar um movimento coeso o suficiente para mudar os rumos da música mundial, nacional ou paranaense.
Mesmo sendo meros desconhecidos, dificilmente passávamos despercebidos. Fosse pelo nosso visual largado retrô, pelos óculos escuros ostentados sem pudor em plena noite, ou pelo nosso som, ao mesmo tempo tão novo e familiar, as poucas pessoas que nos assistiam pareciam sentir que o que reverberava dentro de nós pulsava nelas também. Éramos um circuito bem fechado, uma cena ainda em formação. Tanto as nossas conexões quanto as nossas desavenças eletrizavam as relações. Juntos, criamos músicas, respiramos muita fumaça, buscamos novos ares e forjamos, mesmo sem muito planejamento, uma cena fragmentada, mas contundente o bastante para, décadas depois, ser estudada.
O fato de eu ser mulher num meio predominantemente masculino nunca me pareceu algo especial, muito menos uma anomalia digna de análise. Primeiro, porque nós, mulheres, vivemos num mundo patriarcal e, inclusive, obedecemos e reproduzimos, sem perceber, as regras invisíveis do patriarcado, internalizadas há séculos em nossos cérebros, corpos, pensamentos e palavras. Mas eu sempre soube que nunca, nunca estive só. Cresci em um ambiente familiar onde mulheres empunhavam instrumentos e cantavam lindamente, tanto quanto ou melhor que os homens. Minha primeira banda, Wasted, era comandada por Joan Lang, uma baita compositora que poucos de nós compreendiam, afinal, naquela época, mal sabíamos falar inglês. Depois, para tocar minhas próprias músicas, compostas em português, formei com Naína uma dupla que encantou Alice Ruiz, Jorge Mautner, Chico César, Jards Macalé e o mutante Sérgio Dias, com quem iniciamos a gravação de um disco que nunca foi concluído por causa de uma briga. Mas daquela frustração nasceu o Criaturas, que contava também com minha irmã, Tati Lemos, nos vocais. Dali, Tati foi para a banda Mordida e, depois, formou o Gianninis, grupo ao qual me juntei anos depois, ao lado de Andreza Michel e Babi Age. Tinha a Marielle Loyola, a Adri Perin. Nós, mulheres, não estávamos ali para enfeitar os palcos e a cidade. Fazíamos música, fazíamos história, mandávamos ver em cima dos palcos e fora deles.
Como este livro demonstra, não estávamos sós: homens e mulheres, trabalhando juntos, fizeram o que parecia ser impossível — moveram montanhas e instituições para amalgamar diversos nichos musicais numa mesma cena. Sem a dedicação, o idealismo, a garra e o know-how de produtores, agitadores culturais e jornalistas muito mais experientes, antenados e bem conectados do que nós, aquela “renascença” de bandas e festivais talvez não tivesse ecoado tão forte, e certamente não teria deixado saudades, a ponto de continuar sendo reprocessada em nossas memórias e neste estudo.
Entre ruídos, microfonias e berros propagados e abafados pelos becos, bares e buracos de som precário em que tecemos essa cena de cenas, Curitiba continuou sendo a mesma pacata, patriarcal e conservadora República de Curitiba. Algumas pessoas chegaram bem perto de entortar essa régua, de quebrar essa regra curitibana. Seus heroísmos, inventividades e astúcias estão narrados aqui. Mais do que um simples elogio de um músico e acadêmico que se propôs a analisar os grupos e as pessoas que o inspiraram, este livro é um registro fundamental para compreendermos como as novas formas de produção musical, impulsionadas pelas novas mídias e tecnologias de gravação e comunicação, impactaram e foram impactadas pelas nossas músicas. Aprecie sem moderação.